PUBLICAÇÕES VADIAS

Os posts existentes neste blog devem ser lidos segundo a ordem indicada nos títulos; a primeira com o número 1, a segunda com o número 2 e assim sucessivamente. 再见

7:: MERDA

Depois de ter estado naquela casinha, DocVadio tinha de conseguir voltar a falar a língua dos humanos, tinha de conseguir comunicar com aquele rapaz que o expulsara daquele quarto revestido de recordações. Todos os dias, DocVadio praticava incansavelmente, e todos os dias espiava aquele rapaz. Passaram meses e os resultados não eram muito positivos, já não tinha muitas esperanças. Irritado DocVadio deu uma cabeçada na parede, e, com a dor, soltou uma exclamação muito feia daquele focinho: “MERDA!”. DocVadio nunca ficara tão feliz por dizer aquela palavra, finalmente uma palavra lhe saíra da boca.
Não foram precisos muitos dias para que dominasse a nova técnica de comunicação, faltava agora conseguir falar com o rapaz sem o assustar.
E lá foi ele ao encontro do rapaz. DocVadio chega à casinha, a porta está encostada, ele empurra-a, entra, depara-se com o rapaz doente, no chão, a tossir. O rapaz estava com uma pneumonia, fraco dos pulmões por dormir com os cheiros das tintas, fraco do estômago por nunca comer como deve ser, fraco do espírito por se sentir só, fraco por ser fraco. DocVadio avança com o focinho em direcção ao rapaz agarra-lhe nas calças e arrasta-o até à cama. Assim que o consegue deixar na cama, desaparece da casa para arranjar alimentos. Ao fim de um mês de tratamentos DocVadio curara o rapaz. No fim de contas, continuara a exercer a sua profissão só que agora em sentido inverso. Por alguma razão o rapaz não ficou muito impressionado.
Assim começa uma AMIZADE e assim começa a HISTÓRIA.

6:: A casinha

DocVadio juntou-se à matilha e utilizou os seus conhecimentos humanos para conseguir roubar alimentos para a matilha. DocVadio passava a ser o “Robin dos Bosques” e a matilha cada vez ficava mais forte.
DocVadio vagueara toda a noite pelas ruas de Zeron. Ao amanhecer, a reflexão apoderara-se dele. Muitas coisas tinham sucedido e poucas eram as que podia entender. Ele queria desvendar o mistério por detrás da carta misteriosa, quem seria a VADIA? Para além disso tinha saudades de escrever; coisa que já não conseguia fazer com aquelas patas. Ao passar na Avenida Goya, DocVadio parou a admirar uma casinha pequena e muito antiga que estava debaixo de uma ponte. Aproximou-se, e entrou na casa ao ver que a porta estava entreaberta. Foi à cozinha e não encontrou comida, a casa tinha sinais de abandono. Ao explorar a casa DocVadio encontrou uma divisão parecida com o que poderia ser um atelier, e com um grande espanto começa a ver as suas publicações espalhadas pela divisão para além de desenhos e esboços. Toda aquela sala era vítima de uma desorganização brutal.
“ Hei! O que fazes aqui!” DocVadio tentou responder mas apenas lhe saíam latidos, só restava uma alternativa, FUGIR!


再见

5:: Rufia

Os cães precipitaram-se sobre DocVadio com um ar bastante ameaçador. Um deles ataca DocVadio, sem saber o que fazer grita por socorro mas não lhe saem mais do que uns latidos. Subitamente, surgiu um cão ao fundo “Quietos! A nossa matilha ajuda os seus, não vêem que é dos nossos! Desculpa-nos esta atitude, o meu nome é Rufia” DocVadio não queria acreditar. Conseguia perceber o que estes cães lhe diziam. Faltava saber se conseguiam percebê-lo “O meu nome é DocVadio” “Que raio de nome é esse?!” disseram eles “É uma longa história…” “Vais ter tempo para explicar, juntas-te a nós?”


再见

4:: O Vadio

O veterinário ficou desesperado. Decidiu ir a casa pegar no que pudesse e comprar bilhetes de avião para qualquer país, mas ao mesmo tempo não percebia de onde poderia vir aquela carta, a menos que toda a sua criação dos últimos anos se tivesse tornado real. Também podia ser uma armadilha. Começou a analisar o que se passava fora da clínica, e lá fora estavam vários indivíduos vestidos com um fato azul escuro que tinha uma textura idêntica às escamas de um réptil, para além de um capacete que lhes cobria a cara por completo. O nosso veterinário começou a perceber a gravidade da situação, dirigiu-se de novo para perto do cão que não recuperara e que num suspiro fez com que se escutasse uma única palavra em todo o laboratório, ADEUS, fechando os olhos de seguida. Logo no instante seguinte alto se escutou – Sabemos que te encontras aí dentro. Vamos avançar. Daqui por três segundos avançaremos. 1, 2, 3, aqui vamos! À medida que eles começam a avançar, começa também a trovejar. O primeiro narci a abrir a porta é atingido por um relâmpago, o que poderia ser uma tremenda coincidência, mas a verdade é que o segundo a tentá-lo também sofreu o mesmo. Isto fez com que o resto dos narcis recuasse. O veterinário não percebia o que se passava, até que pensou no que dizia a carta. Tinha-lhe sido garantida alguma protecção. E sem explicação para isso, crescia dentro de si uma enorme crença nas palavras da carta e na existência da VADIA, identidade misteriosa que ele próprio criara nas suas publicações.
Não surgira outra hipótese; o veterinário decidiu testar em si e naquele cão todo o trabalho de pesquisa que tivera feito durante os estudos e a carreira profissional, e que nunca tivera sido feita em animais. O veterinário decidiu fazer um transplante do cérebro trocando o do cão pelo o seu. A sua ideia era assumir o corpo do cão e assim poder escapar sem ser reconhecido pelos narcis. Assim começou a sua operação enquanto aquela misteriosa tempestade o defendia.

Horas passaram-se e a operação corria bem. Faltava apenas uma grande descarga eléctrica sobre a sua cabeça que já não estava no corpo humano mas sim no corpo do cão, e essa descarga não tardou, veio directamente do céu rebentando o telhado e o tecto até atingir a cabeça do homem-cão.
O homem-cão acordou. Um dia inteiro passara, já tinham chegado vários reforços para o deter. O homem-cão derrubou todas as substâncias inflamáveis existentes no laboratório sobre o seu antigo corpo e o resto das provas e pegou-lhes fogo, fugiu pelo telhado separando-se assim por completo da sua antiga figura para sempre. Chegando a um beco onde existiam cães vadios o homem-cão disse – A partir de hoje o meu nome será DocVadio.


再见

3::: A carta

A carta dizia:

Todas as tuas últimas publicações foram apreendidas pelo regime. Eles andam atrás de ti. Esta carta serve para te avisar que deves desaparecer o mais rápido possível. Eles devem estar a aparecer, posso retê-los durante algum tempo mas terás de agir rapidamente.

Vadia 再见

2:: A ditadura

Durante anos o rapaz escreveu e escreveu até que as publicações começaram a chegar a todas as caixas de correio da freguesia, e da freguesia a todas as do conselho, e do conselho a todas as do distrito e dos distritos para outros distritos. Quando o rapaz atingiu todas as caixas de correio do país já não era um rapaz mas sim um adulto formado em medicina veterinária. Toda esta actividade permaneceu sempre secreta, ele nunca tentou revelar a sua identidade.
No ano dois mil e vinte (2020) o criador das “publicações vadias” tinha vinte e cinco anos, exercia a sua profissão numa clínica veterinária durante o dia e escrevia as suas publicações à noite.
No dia vinte e cinco de Outubro de 2020 o veterinário estava de parabéns pois fazia vinte e seis anos, e nessa noite em vez de sair do trabalho directo para casa, decidiu festejar sozinho, também não lhe surgiam muitas alternativas, pois ao longo destes anos com uma vida tão ocupada e secreta não tivera tempo para fazer grandes amizades. Enquanto passeava nas ruas de Zeron escutou uns ruídos vindos de uma ruela. Ele embrenhou-se na escuridão ao ouvir os latidos de sofrimento de um cão. Ao aproximar-se, ouviu rizadas e rumores idênticos aos dos apostadores de corridas de cavalos. Logo suspeitou que se tratavam de combates ilegais de cães e ainda na escuridão ele gritou bem alto com a voz mais grave e grossa que pôde,

POLÍCIA! TODOS QUIETOS!

Todos os amantes daquele desporto cruel desataram a correr ficando apenas no local, imóvel, o cão que latia. O nosso amigo misterioso pegou no cão ao colo imediatamente e partiu apressadamente em direcção à clínica, onde lhe começou a prestar os cuidados, ele apresentava uma grave lesão no crânio. Durante toda a noite o veterinário fez os possíveis para poupar a vida a este cão que lhe surgira de um modo tão inesperado. Mais inesperado ainda foi que na manhã seguinte pela hora de abertura ainda nenhum dos seus colegas tivesse aparecido na clínica. Como não podia sair de perto do cão ligou a televisão. Estranhamente, em todos os canais passava a mesma transmissão em que aparecia um sujeito a falar – Este comunicado serve para informar que o partido Narcis tomou conta de todo o país, impondo um regime cujo plano de implementação não será divulgado, não deixando de ser punido todo aquele que o desrespeitar. Continuem as vossas vidas normalmente aqueles que estiverem a proceder contra a lei em breve o ficarão a saber. Esta é já a lista de indivíduos apanhados em contrafacção e desrespeito ao regime: Maria João Luís 23 anos, António Rui Pais 53, Manuel Ferreira 45, Sofia Patrício 17, Ricardo Lopes 14 (…) – E assim continuava a dizer nomes e idades durante horas.
Era meio-dia, escutou-se o tilintar da porta de entrada, o veterinário dirigiu-se até lá, e lá encontrou um berço que tinha um trela com um distintivo que dizia VADIA e também uma carta.


再见

1:: O Rapaz anormal

A 16 de Outubro de 2005 um rapaz estava acordado quando já devia estar a dormir, a noite era silenciosa e não havia nada que explica-se a razão de aquele rapaz ainda não estar a dormir. De manhã já na hora de ir para a escola o rapaz continuava acordado, foi para a escola e por alguma razão não comeu nada antes de sair.
Os Pais deste rapaz eram pessoas normais que primavam pela normalidade, que tinham atitudes normais, vestiam-se de forma normal, falavam de forma normal, tinham uma casa normal, um carro normal com uma cor normal, e como é normal davam uma educação normal a seu filho, que tinha um nome normal, um penteado normal, e uma roupa normal. Mas este rapaz não dormiu naquela noite e pelo que parece não era a primeira vez, o que não é normal, mas sim, anormal.
Enquanto a pequena comunidade não desconfiou da anormalidade do rapaz nada de mal lhe aconteceu, até porque ele próprio pensava que era normal. A vida do rapaz começou a ficar distorcida e difícil em Novembro de 2007 quando ele mesmo começou a desconfiar que não era normal.
E assim começou a escrever num caderno, e todas as semanas chegavam às caixas de correio de todo o bairro os seus escritos, aos quais ele deu o nome de "PUBLICAÇÕES VADIAS"

再见